O Trem e Os Trigais.

Olá. Decidi fazer um update aqui no TCIC, já que estava com material pronto, só esperando pra ser digitado. O texto a seguir foi escrito em uma tarde vazia do dia 19/07/13, e editado hoje, dia 06/08/13. De algumas formas, essa história curta, descreve como eu estava me sentindo quando escrevi, metaforicamente, claro. Espero que gostem. Beijos do autor.

 Eu não tinha ideia de como seguir a partir dali. Sentado na cadeira do saguão do hospital Santa Maria, eu dissipava. Mesmo após receber a notícia de que eu estaria viúvo dali em diante, eu continuava ali. Não havia nada que eu pudesse, nem quisesse fazer. Mesmo com montanhas de papel a serem preenchidas para o escritório de contabilidade onde eu trabalhava, eu os ignorava, sabia que daria um jeito, como sempre fazia. O chaeiro de limpeza daquele necrotério de sonhos e planos, se cristalizou em minha memória, como uma lembrança mais que tangível. Um souvenir que eu não quisera, mas que eu carregaria até que de bolsos vazios. Observava o cenário e os personagens que me cercavam. No canto do saguão, próximo a recepção, uma enfermeira aparentemente desinteressada, lixava as unhas encostada no caixilho da porta que levava a um corredor. Uma dupla de garotas, visivelmente alcoolizadas, riam da própria desgraça, com um descaso único. Sofrer um acidente voltando da bohemia, seria mais uma história a ser contada em qualquer roda de amigos, como uma condecoração auto imposta por uma atitude inconsequente. Suas pernas cruzadas, inutilmente guarnecidas por saias mínimas, sugeriam o que suas limitações intelectuais, que assim como suas coxas, que insistiam em ostentar, confirmavam. No canto da sala, ao lado do bebedouro quase esgotado, sentava um senhor de aparência simplória. Aguardava como um profissional, como quem está habituado a isso, em um conformismo único. Se distraia estalando os dedos grossos de suas mãos calejadas, cujo som passava quase que despercebido, pelo menos para mim. Eu continuava a observar cada um deles, procurando existir na vida alheia, um velho hábito que me perseguia. Ora me distraia com meus sapatos recém engraxados, que devido aos recentes acontecimentos, já estava sujo de poeira e terra. Ora voltava a me entreter com aquele vazio mórbido que dominava o ambiente frígido da sala de espera daquele lugar. Nesse momento me peguei pensando. Sala de espera do que ? Pra mim era uma sala de espera para o fim do que acabara de começar, nisso alguns minutos se passaram, e logo decidi me levantar.

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Saindo do hospital, passando pelas portas de vidro com adesivos que se desgrudavam dele, provavelmente devido a ação do sol, caminhei até o meu carro, o que aconteceu mais rapidamente do que eu imaginara. Tudo parecia acontecer mais rápido naqueles momentos, por algum motivo que até hoje eu não sei qual é. Havia muita coisa acontecendo á minha volta. Ambulâncias saisam e entravam do corredor de emergência depressa. Há alguns passos de mim uma senhora de meia idade derrubava suas chaves, sofrendo para as recuperar. Eu era indiferente a tudo isso. Não que devesse me preocupar, mas minha natureza altruísta, em outras circunstâncias, me faria procurar ser útil. Entrei no carro. Não acreditava que estaria sozinho dali em diante. Seu perfume doce e vibrante ainda estava impregnado no banco de passageiro de estampa ultrapassada, já desbotada pelo uso. Talvez esse fosse a sinopse da minha vida em diante. Um banco vazio. Algo que me iludiria ao sentir seu perfume, o que me faria sorrir, mas ao mesmo tempo ter lágrimas engatilhadas, prontas para serem disparadas a esmo, pois sabia que ao olhar para o meu lado direito, viria o vazio. O mesmo que me consumia naquele momento. Ali fiquei. Revivendo todas as desventuras que aconteceram naquele infeliz dia de setembro. Dia que não cumpriu a promessa que o céu azul e iluminado me fizera de manhã. Acordara com cuidado, me esgueirando entre as evidencias do que acontecera na noite passada. Tomei banho e me vesti com o maior cuidado para não acordá-la. Antes de sair de casa, por alguns momentos, a observei dormir, havia tanta poesia naquele momento. A via tão frágil, tão desamparada, algo que era irreconhecível quando estava acordada, devido a sua personalidade forte, cuja constante certeza da própria certeza resumia bem. Dei um beijo em seus olhos, e fui trabalhar. Quem diria que seria a última vez que a veria.

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Era um dia tranquilo. Fingia estar trabalhando, com uma planilha aberta em meu computador, mas na verdade me concentrava mesmo no bloco de rascunhos, que rabiscava despreocupadamente. Ainda era manhã. A cada quinze minutos tomava uma caneca de café. Hábito que seguia religiosamente, desde que decidiminos morar juntos há um ano atrás. Seus hábitos considerados saudáveis, haviam mudado drasticamente meu estilo de vida. Havia trocado conhaque por café. Cigarros por balas de menta. Desenhava uma caricatura exagerada, de um rapaz careca que esperava para falar com o meu chefe no sofá no canto da sala, quando ouvi meu telefone celular tocar, quebrando o silêncio frio que tomava conta daquele típico escritório cinza do centro. Atendi, e logo ao dizer “alô”, pude perceber a voz de Jorge, com uma pitada de preocupação em seu tom. Me dizia que Juliana acabara de sofrer um acidente de carro. Decidi ir até o hospital, para ver do que realmente se tratava, mas não tive pressa, devido a marcante característica de meu cunhado de ser exagerado em suas reações. Terminei a caneca de café que já esfriava em cima de minha mesa, amassei a folha de papel que rabiscava e saí do escritório. No caminho juntei meu paletó do chão, que caira do cabideiro e o vesti, tirando a poeira que havia grudada nele. No caminho até a garagem, e depois até o hospital, planejava em mimá-la a noite para conpensar todo aquele estresse que ela estaria passando. Talvez a levasse para jantar, e depois ao teatro, ou apenas ficar em casa deitados em frente a televisão da sala, velando a semana que se esgotava. Várias ideias me ocorriam, eu estava feliz fazendo planos.
 Estacionei o carro a cerca de cem metros da entrada da sala de emergência, aproveitando uma vaga recém vaga. Desliguei o rádio, que contava a história de uma mulher traída em um tom característico do melodrama radiofônico do meio do dia. Entrei no hospital preocupado, mas consicente que apesar daquele imprevisto, tudo acabaria bem no fim do dia. No fundo da sala, pude vermeu cunhado amparando minha sogra em seu ombro, já encharcado por lágrimas. Neste momento, percebi que nada estava tão bem quanto eu imaginava. Minha sogra sempre havia sido uma mulher calada. Firme como uma rocha. Só havia visto lágrimas escorrendo de seus olhos, seis meses atrás, quando seu marido faleceu, mas mesmo assim, aquilo ainda não era um choro. As mesmas lágrimas de minha sogra, rolavam discretamente pela feição de pedra de Jorge, que eu nunca havia visto chorar. Tirei estas conclusões em poucos segundos, e então acelerei o passo em direção ao fim do corredor, onde estavam. A cada momento, o cheiro de morte daquele hospital me enchia os pulmões. Eu podia sentir o peso do ar em meus ombros. Antes mesmo que eu pudesse chegar perto, e perguntar o óbvio, Jorge fez um sinal, sugerindo um bebedouro no canto esquerdo do saguão. Logo enchi um copo descartável com água, e mais que prontamente o entreguei a minha sogra, que o recebeu com suas mãos trêmulas e enrugadas, derrubando alguma água no piso branco no qual pisávamos. Aquilo era a perfeita representação do desespero que a consumia. Que os consumia. Que logo nos consumiria. Antes que pudesse fazer qualquer pergunta, ouvi nas palavras secas e ásperas de Jorge, a triste realidade da situação. No caminho para a casa de sua mãe, onde almoçava em seus dias de folga, por um motivo desconhecido perdera o controle do carro, derrapando na pista, e caindo em um barranco ao lado da pista. Se encontrava no CTI, aguardando cirurgia, perdera muito sangue. A narrativa macabra que preenchiam aquelas terríveis lacunas em minha mente, foi interrompida por um enfermeiro de aparência impecável, que nos convidava a sala do Doutor de plantão que nos aguardava. Caminhamos rapidamente até lá, nossos passos largos e rápidos resumiam o desespero que tomava conta. Ao abrir a porta, já desmoronando, pude ver um garoto sentado atrás de uma mesa branca, coberta por fichas e prontuários. Muito polido, nos ofereceu as cadeiras que faziam um arco em frente a sua mesa. Sentei e aguardei. Se fez um silêncio por um momento, então se apresentou como Doutor Ferreira. Explicou o resto da história que Jorge havia começado a me contar, mas com detalhes técnicos que amplificavam o horror daquilo tudo. Com sua voz de veludo, nos preparou para o que estava por vir. O acidente havia sido fatal. Mesmo sendo socorrida prontamente pela equipe de emergência que fortuitamente voltava de uma chamada de trote, não havia resistido. O choque tomou conta de mim, de nós, do ambiente todo. De fato não duvido que o mundo tenha parado de girar por alguns instantes. Logo após dar a terrível notícia que desabara em nossas vidas, o mesmo enfermeiro que havia nos levado até a sala, ressurgiu em uma porta do outro lado da sala, que dava no corredor da emergência. Dizia que um paciente havia dado entrada no hospital em estado crítico, e a presença do médico era necessária. Antes de deixar a sala, tentou nos tranquilizar, usando palavras macias. Nos despedimos e agora, não mais carregando a esperança que sugeria um arco íris após a tempestade, deixamos a sala, e seguimos para o estacionamento. Esperei-os ir embora, e saí desesperadamente em busca de algum fumante que pudesse saciar meu desejo por tranquilidade. Improvisar um olho de furacão era o que eu precisava. Assim o fiz. Não foi difícil encontrar uma senhora fumando na área de serviço, em uma construção anexa ao prédio principal do hospital. Seu uniforme desbotado a caracterizava como uma funcionária da limpeza. Meu pedido por um cigarro fora atendido com um certo remorso, contido em um murmurio rouco. Aquele cigarro barato, contrabandeado do Paraguai, que outrora despertaria meu mais profundo asco, bronzeava meus pulmões como como o mais fino dos charutos importados. Após queimar meus lábios secos fumando o filtro, desejando prolongar aquele precioso momento de prazer, flutuei até a sala de espera, e lá fiquei.

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 Uma pomba cortando o horizonte me trouxe novamente até o banco do meu carro, rasgando meu raciocínio. Nesse momento decidi sair dali. Liguei o carro, e em uma manobra só, saí daquela vaga apertada, que mal cabia um carro médio. Decidi ir até nossa casa, e tentar dormir um pouco, como se isso fosse aliviar a minha dor, que nesse momento, já podia sentir me devorar de dentro para fora. Cada músculo do meu corpo doía. Câibras dificultavam o trajeto, era difícil alcançar o pedal da embreagem, a cada troca de marcha me sentia mais fraco. Por alguma razão, mudei meu trajeto. Decidi tomar o caminho mais curto, mesmo tendo que trilhar algumas estradas de chão batido, entre o centro e o subúrbio. Vi os edifícios no horizonte se misturarem a casas, e então casas se misturarem a plantas, e por fim me ver cercado por nada além das plantações de trigo que dançavam junto ao vento, reverenciando qualquer que seja a força que a rege. Ao longe pude ver o trilho do trem, que diariamente levava do interior ao porto, grãos para exportação, passando pelos arredores da capital. Ao longe eu já podia escutar o trem se aproximando. O ranger impiedoso dos trilhos crescia conforme eu me aproximava, e se misturava, com o singelo assoviar da brisa que cortava formas descartáveis nos trigais. O trem se aproximava, assim como eu. Conforme ia me aproximando dos trilhos, ia desacelerando o carro, ao contrário do trem, que parecia cada vez mais veloz ao se aproximar. Nesse momento tudo parecia fazer sentido.

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Minha percepção afetada pelos recentes acontecimentos me deixava embriagado em um sentimento de dissipação. Eu me sentia derretendo no banco do carro, me via me misturando ao aroma do perfume de Juliana que com a ação do sol, enchia o veículo todo. Com os vidros fechados, eu me encontrava em uma estufa as avessas. Um lugar onde ao invés de haver cultivo e crescimento, havia a morte, o declive. A cada momento me aproximava mais do trilho, com meus pulmões cheios de lembranças que pareciam se misturar as impurezas do tabaco que naquele momento me causava palpitações. Quase que parando, começaca a cruzar o trilho. Em um lapso de realidade, deixei o carro morrer. Ali fiquei por alguns momentos. Eu estava pronto para seguir em frente. Via a locomotiva se aproximando mais e mais a cada momento. A brisava virava vento, os trigais acenavam frenéticamente. O trem se aproximava. Fechei os olhos. Abracei tudo que eu tinha. Esperei encontrá-la logo, e de olhos fechados, estava pronto para o começo de um novo final.

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